domingo, 5 de fevereiro de 2012

Roubaram meu Mamãe-Sacode

(SALVADOR - Eu quero muito mais que o som da marcha lenta) - Chegou fevereiro. Chegou o Carnaval. E o Carnaval, na Bahia, me leva à infância. Me leva a imagens, sons e sentidos que marcam a minha essência.

Nasci e cresci na Rua da Mouraria, bem próximo à sede do bloco "Os Internacionais". Acompanhava a elaboração dos figurinos, a escolha da fantasia. Via de perto o nascimento de cada peça, com as costureiras que, incansavelmente, trabalhavam lá, onde morávamos, no seu andar térreo. Estive ao lado da concentração onde o maestro Reginaldo "Bigodão" comandava uma banda de músicos de "não-sei-quantos" homens para sair da Mouraria e conduzir Os Internacionais rumo ao seu desfile. Instrumentos de sopro em cima do caminhão. Instrumentos de percussão ao chão.
Com minha mãe, de marajá



Cresci utilizando cada uma das fantasias do bloco, e me apaixonei com a paixão de meu pai, louco por Carnaval mas, principalmente, para "ver o bloco na rua". Chorei com a sua emoção que derramava lágrimas ao avistar, de longe, o bloco despontando na Avenida com seus 1.500 integrantes e suas alegorias de mão abrindo alas para um espetáculo belíssimo e inesquecível. Angustiáva-me com a sua eterna angústia que, ao perceber que o seu bloco estava perfeito, iniciava a torcida para que tudo logo acabasse, sem problemas, sem percalços, sem confusão. O ato de colocar o bloco na rua era a sua paixão, o seu ideal. A percepção, à quarta-feira de cinzas, de não ter havido contratempos, coroava o seu carnaval e alavancava a preparação do ano seguinte.
Com irmão, pai e mãe, no "Eu e Ela"

Em paralelo, via de perto o Cheiro de Amor exalando sua fragrância na Avenida e usando um macacão por 3 dias consecutivos. Imaginem como se encontrava o mesmo no último dia de carnaval, posto que era impossível lavar e secar tal tipo de tecido de um dia para o outro. Vi o Camaleão de Luís Caldas, o Crocodilo do Asa de Águia, o Eva de Ricardo Chaves. Vi as mortalhas invadirem multicoloridas as Avenidas do Centro de Salvador. Vi, ainda os blocos subirem até a Sé, pararem para um leve descanso e descerem para a Carlos Gomes via Praça Castro Alves quando, não raro, encontravam outro bloco em sentido inverso. Me desesperei quendo o trio dos Comanches perdeu seus freios na descida da Sé matando inúmeros foliões e gerando o pânico na praça do poeta.
Com mãe e irmão, de gondoleiro


Enquanto isso, saía no Domingo e na Terça fantasiado de romano, marajá, gondoleiro, pierrot, chinês, imperador inca, príncipe, pirata, dentre outros. Isso nos Internacionais, onde os homens estavam dentro das cordas e as mulheres compunham o séquito no lado de fora.

No Sábado e na Segunda, a coisa mudava de figura. A família inteira estava reunida no "Eu e Ela", utilizando-se de mortalhas e, assim como em "Os Internacionais", a condução era realizada pela grande banda Chiclete com Banana. Os foliões dançavam, brincavam, curtiam, namoravam, bebiam. Eu estava vendo o Carnaval sendo feito e utilizado pelas mesmas pessoas. O organizador era folião. O ambulante, idem. O cantor, também. O radialista, igualmente. Bem como os artistas, intelectuais, políticos e todos os segmentos sociais.
Com meu irmão, de árabe

Apesar de muito pequeno, vivi tudo muito de perto. Minhas primeiras imagens da infância me remetem à rotina matutina da organização carnavalesca, com a chegada do trio, a preparação das cordas, o teste do som, a dinâmica dos caminhões com os "engradados de cerveja" abastecendo os bares e ambulantes na área do quartel dos Aflitos, o mamãe-sacode empunhado com orgulho...

Ah.... os Mamães-Sacode... Esses eram, talvez, as maiores referências do Carnaval da Bahia. Compunham elementos de estética visual indescritíveis que, ao serem atiçados conjuntamente ao ar davam, ao espectador, uma visão sublime, que demonstrava indelevelmente o fracasso ou o sucesso do artista de trio, do puxador de bloco.
Com meu pai, no "Eu e Ela"
O bloco Tiete Vips, popularíssimo, através do saudoso Val Valle e da Banda Tiete Vips nos brindavam com um espetáculo deslumbrante ao adentrar a área do palanque do Campo Grande. Quem não lembra do famoso grito de guerra: "Tiete Vips chegoooooou, ê aê aô".

Vi o Frenesi de Adhemar e Banda Furta Cor. Vi, ainda, a deslumbrante Banda Mel com o seu Prefixo de Verão e a sua Baianidade Nagô. Acompanhei a Reflexus com o seu Madagascar Olodum e o Canto para o Senegal.
Com meu pai e irmão, de árabe

Acompanhei os "gênios" do carnaval baiano que, sob a aura da modernidade, extirparam a nossa mais pura cultura. Os magos criadores do abadá e carrascos das fantasias e mortalhas. Não há mais alegorias de mão. Não há mais a alegria do mamãe-sacode eclodindo no ar das ruas centrais de Salvador. Criaram o circuito alternativo na Barra e desterraram a Avenida. A partir do momento em que ficaram de um lado os criadores e, do outro, os foliões, o Carnaval da Bahia passou a ser um espetáculo midiático, de compra e venda de pacotes publicitários, perdendo toda a sua verdadeira essência. Os camarotes são excrescências deste processo, onde se ouve 90% de música eletrônica e, muito raramente, surge alguém que recorda estar no Carnaval da Bahia e vai dar uma espiadinha no trio que está a passar.
Meu pai, de romano

Há alguns anos, acreditem, fiz a bobagem de  participar de um bloco puxado pelo tal do Tuca Fernandes, o bloco Eu Vou. A cena que presenciei era dantesca. Inúmeros adolescentes não estavam nem um pouco interessados em dançar, pular, brincar. Era uma sequência tão bizarra quanto assustadora. Parecia um filme de zumbis, ou mesmo o seriado "The Walking Dead". Adolescentes totalmente dopados, olhos vermelhos, bocas abertas, babando e procurando outras bocas para consumar um ato que, em nada, se lembra ao clássico beijo de carnaval. Nem Kubrick poderia descrever um cenário tão aterrador.

Meu pai, improvisando, se o
percussionista atrasava
Arlequim morreu. Colombina se prostituiu. Pierrô abriu uma seita fanática religiosa. O folião não quer mais folia. O cantor não quer saber do folião, e sim da mídia. Ninguém agita mais ninguém para que o seu bloco seja o mais animado da Avenida. O cantor só faz cena para aparecer nas telinhas da Band Folia ou atrasa a apresentação para entrar ao vivo no Jornal Nacional.

Queimaram a fantasia. Extirparam a magia. Roubaram, enfim, o meu mamãe-sacode.

Esta crônica é uma homenagem especial ao meu saudoso pai, Luiz Gagliano (ou, simplesmente, Galiano), e aos não menos saudosos: Alberto Carrera (tio Carrera), Alberto Fuezi (tio Betinho), (tio) Rubico e Fernando Escariz. Que se sintam também homenageados os grandes amigos (Dr.) Adelmo Schindler, Raimundo Sobral, (Dr.) Anorailton Silva, Walter do Espírito Santo (o Waltinho), Edson Felzemburg (o Edinho), Fidel Castro Pereira, Rosiel e Adolfo Ventim (o Papito).

15 comentários:

Vitor Viena disse...

Com certeza sua Família estaria feliz com essa belíssima homenagem. Pelo visto ficou nítido o quanto o carnaval era importante para eles e a dantesca diferença para os dias atuais como bem lembrado!

Fábio Iglesias Gagliano disse...

Vitão, o Carnaval era o meu dia-a-dia, e por isso a motivação para este texto. O fato é que vibrávamos quando víamos Luiz Caldas, Chiclete ou Sarajane no Cassino do Chacrinha. Era o nosso Carnaval ganhando destaque nacional. Infelizmente, esta exposição, aliada à explosão de Daniela Marcury, transformaram o nosso Carnaval num produto nacional e rentável. O resto da história, já conhecemos.

Elaynne disse...

Fabio, amigo, vc realmente me deixou emocionada, arrepiada com a linda lembrança do verdadeiro carnaval! Eu, que sendo sua contemporânea, cresci na saúde, vendo a saída do bloco dos caretas, e que tanto agitei minha sempre companheira mamãe-sacode atrás do Bloco Beijo, puxado pela Banda Beijo sob o comando de Netinho, suei e usei dia após dia a mesma mortalha surrada de guerra, me aposentei desse pseudo carnaval dos novos tempos. Nesse carnaval não há mais espaço para quem realmente ama e curte o carnaval. Desisti, pendurei minhas chuteiras, e tento sempre que posso viajar e ficar alheia ao que acontece por aqui...Triste, mas realmente só podemos nos consolar com essas belas recordações. Lindo demais seu texto! Parabéns!!!

Fábio Iglesias Gagliano disse...

Elaynne, não há como entrar em fevereiro sem voltar a estas doces lembranças do Carnaval Baiano. O Bloco Beijo era um dos mais lindos da Avenida. O ano em que Netinho lançou "Beijo na Boca" (com cabelo oxigenado, quase branco) foi inesquecível. Assim como o ano em que resolveu inovar e lançou um mamãe-sacode com ráfia nos dois lados (amarelo de um lado e preto no outro). Foi o maior mico pois, ao se balançar o mamãe-sacode vc tomava uma chicotada no rosto com a parte contrária (risos).

Anônimo disse...

Binho, consegui reviver o carnaval, mesmo nao tendo participado ativa e diretamente, em SSa city, como numa tela de cinema, em imagens 3D, pela riqueza das suas palavras!!!!! Parabéns !!!!! Ericka Costa Andrade

Fábio Iglesias Gagliano disse...

Kinha, tentei retratar um pouco do que foi o carnaval de Salvador pouquíssimo tempo atrás. Infelizmente, a força do produto criou um monstrengo comercial que desvirtuou a essência da nossa festa de rua.

Greice Helena disse...

Eta, Fábio, adorei!
O fato de estar tão próximo das entranhas do backstage do carnaval tornam suas lembranças muito vívidas e imagino quão saudosas elas são, posto que também são lembranças de cunho familiar.
Lembro do sucesso que era o bloco "Os Internacionais", e do mulherio que comentava que naquele bloco só saíam os homens mais lindos de Salvador. Afffee Maria!!!Rssss
E a música:
Internacionais estão passando agora,
Internacionais, mandando a tristeza embora,
Nós somos piratas Internacionais,
Nosso tesouro vale mais que ouro
Garotas sem igual
Não precisava apelar para músicas(?) de sentido duvidoso, nem baixarias...
Belezas à parte, notava-se que o bloco era organizado e por isso, respeitado.
Era um carnaval feito, como você bem o disse, pelo e para o folião.
Inesquecível também aquele show que Luiz Caldas deu em pleno domingo no Campo Grande (quando este ainda era o circuito oficial) acho que cantando Fricote.
" Olha nega do cabelo duro, que não gosta de pentear..."
Ah amigo, os tempos eram outros... não tinha tanto patrocinado e patrocinador e nem de longe se compara ao que se vê hoje.
Parabéns pela crônica.

Fábio Iglesias Gagliano disse...

Eita Greice. É bom ver as palavras de quem viveu e conhece um pouco de tudo o que escrevi.
O hino dos Internacionais é este mesmo e, recentemente tive a oportunidade de consegui-lo em uma comunidade do orkut (em mp3).
No que tange à música de Luiz Caldas, a palhaçada do "politicamente correto" faria com que o Ministério Público , hoje, enjaulasse o coitado, acusando-o de racismo.

Anônimo disse...

Binho, Vc é show. Impossível não lembrar d'agente pulando junto, neste maravilhoso carnaval. Seu pai era um revoúcionário, um apaixonado e sua cronica consegue nos fazer respirar um pouco disso em você. Amor, Quel.

Fábio Iglesias Gagliano disse...

Êta Quel, nada me emociona mais do que ver suas lindas palavras. Te amo muito, minha irmãzinha linda!

Anônimo disse...

Fábio que bela homenagem ao carnaval e principalmente a nosso Luis Gagliano.
Quanta saudade dele que foi meu mestre, amigo e irmão. "Botar o bloco na rua." Esta frase era a máxima de Luis, e se tornou a base para as minhas conquistas. Estou muito feliz com esta homenagem.
Apoio o seu desabafo em relação ao carnaval. Eu desconheço este carnaval atual. Quando não tenho que apresentá-lo a um amigo que se encanta com essa barulheira e bagunça por não ter conhecido o verdadeiro carnaval baiano, tão brilhantemente documentado aqui por você, eu fujo para bem longe. Infelizmente não vejo como resgatar os antigos carnavais (apesar de algumas resistências isoladas como o carnaval no pelourinho). Realmente bela homenagem.

Fidel Castro Pereira

Anônimo disse...

Fábio, criei-me no Largo Dois de Julho e vivenciei por vários anos o Carnaval da Avenida. Época em que as famílias punham bancos ao longo do percurso para ver a festa (inacreditável, não?). Em que os "caretas" brincavam oferecendo um penico com xixi (cerveja) e salsicha (cocô). Em que as garotas trocavam fitinhas (aquelas que se colocava na testa) por beijinhos. E Sidney Magal, sempre na frente dos Internacionais! Em que as famílias e amigos se uniam com um único propósito: divertir-se ao máximo. E o Jacu, bloco sem corda (Tomara que este ano eu te encontre de novo/no meio da rua/no meio do povo/mortalha encharcada de cerveja até o pé/e a boca lambuzada de acarajé....). Quanta saudade! Eu e meus amigos até criamos um bloco sem corda (Tô com o pau na mão) e nós mesmos fizemos as nossas mortalhas. Que delícia reviver tudo isso! Até dos Apaches com as suas machadinhas (bloco da pesada)tenho saudades. No que transformaram o Carnaval? Que máquina esmagadora. Quantos brincam sem brincar. Quantos curtem sem curtir. Fico triste quando vejo aquele amontoado de gente em um espaço ínfimo,
pelo qual, aliás, pagaram caro, sem nem saber o porquê de estar ali. Não levantam nem o braço; não dão nem um pulinho sequer. Como você já disse, parecem zumbis. Uma diversão sem diversão. Será que estou sendo muito saudosista? O que resta agora é comprar um apartamento de frente para o circuito Barra-Ondina e ganhar um dinheirinho a mais no Carnaval.

Unknown disse...

Fábio, que lembranças!

Lilian Crisitina Marcon disse...

Olá, mexendo nos meus cds, e reli uma cronica que tinha guardado de 2012 - roubaram meu mamãe sacode. Remexendo na internet descobri que estava no ar ainda e acabei lendo outras... Não poderia deixar de te dar aquele abraço virtual por manter essa história viva.
Sou do interior de São Paulo, mas passo meus carnavais em Salvador desde 1993 e acabei me tornando uma pesquisadora fiel em 1998, quando sofri um acidente e acabei perdendo o carnaval deste ano, mas acabei dando um histórico no Carnaxe.com.br - sem vendas ou fins lucrativos.
Se me permitir, gostaria de incluir a foto dos internacionais no site ´é uma reliquia --- com as devidas fonte. Poderia confirmar, se autoriza? lilianmarcon2021@gmail.com
Abraços carnavalescos!!!

Fábio Iglesias Gagliano disse...

Claro que autorizo, Lilian, fique à vontade. Abraço!